Quando a Vida Te Ensina a Ser Nada Para Ser Tudo
Uma reflexão sobre como encontrar sentido na rendição, descobrir força na fragilidade e abraçar o extraordinário que se esconde no comum dos nossos dias.
Às vezes, uma música toca aleatoriamente no carro e, sem aviso, abre uma janela para o invisível. Foi assim que começou a reflexão deste texto, entre o som ligado e o coração exposto e, embora seja semelhante ao texto anterior, aqui partilho outros fragmentos da minha história e rotina como pai, marido e homem de fé, com outras reflexões sobre quando tudo parece falhar, menos a esperança. Não há romantização da dor, mas um esforço sincero de encontrar sentido onde a vida desafina. Falo sobre paternidade, sobre a coragem que nasce do cansaço e sobre como ser “nada” pode ser o caminho para ser tudo, não apesar das fragilidades, mas por causa delas. Escrevo com o desejo de que essas reflexões encontrem eco em quem lê, como quem fala não de um palco, mas da mesma plateia, talvez para ajudar alguém que esteja vivendo, ou já tenha vivido, algo parecido.
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Eu sou desses que, depois que dá partida no motor do carro e puxa o freio de mão, o próximo ato é ligar o som (isso quando ele não liga automaticamente). Ouvi dizer que não faz muito bem sempre dirigir ouvindo música. Igual Coca-Cola, que todo mundo fala mal, mas não falta num coffee-break. Não sei se na mesma proporção, mas o fato é que, sobre o primeiro caso, sim, eu sempre dirijo ouvindo alguma coisa, geralmente música. E dessa vez foi voltando da escola dos meninos quando fui deixá-los que tive os insights que culminaram nessa reflexão a partir de uma determinada música que veio “do nada” (do nada mesmo? Vamos ver!). Ah, eu também gosto de deixar o algoritmo do streaming sugerir aleatoriamente alguma música que eu goste com base nas que eu já curti.
Achei importante contextualizar tudo isso porque eu acredito que até nesses detalhes age a Providência e a voz de Deus na minha vida (e talvez de forma semelhante na sua!). Pois bem, estava dirigindo quando toca (aleatoriamente?) a música “Serei Tudo”, composta e interpretada pela Laura Salvador. Pra mim, o trecho mais marcante é justamente no refrão, quando ela diz “Se me queres nada, eu serei nada. Se me queres tudo, eu serei tudo. Quero fazer tua vontade, pois ela é o meu Céu”.
Pronto! Voltei ouvindo e refletindo sobre a minha vida de forma que não sei nem como cheguei em casa, parece que fui no automático. (Será que é por isso que não recomendam?). Enfim, fiquei pensando em quantas vezes eu rezei no Pai-Nosso “seja feita a Vossa vontade…”, mas, no fundo, quando Ele deu sinais do que queria pra mim, eu encarei como sofrimento e não como alegria. Será que ultimamente Ele tem me querido como “nada”? Então, o que é esse “nada”? Com certeza não é “nada” no sentido de desistência das coisas (embora, sim, em certos momentos eu tenha sentido vontade de desistir e já partilhei isso antes). Mas foi justamente nesses momentos que comecei a perceber, pela fé, que há uma diferença enorme entre simplesmente desistir (ou se apagar) e se entregar de forma disponível. Ou seja, entre ser passivo e ser disponível. Entre resignar-se e render-se. E foi a fé que me ensinou isso, pouco a pouco. Levou tempo, como todo amadurecimento leva.
Aprendi que a passividade é quando você deixa a vida acontecer com você, como se estivesse numa rede sendo “balançado” por outra pessoa (como eu faço muito com os meninos aqui). A disponibilidade é quando você escolhe, conscientemente, se colocar nas mãos de algo maior que você, confiando que existe um sentido, mesmo quando você não consegue enxergá-lo. É uma decisão ativa, não uma omissão.
Descobri isso da pior maneira possível lá no fatídico dia do ultrassom morfológico do Tomás quando nos deparamos com a notícia que viraria nossa vida de cabeça para baixo. Todas as minhas certezas sobre competência, controle e capacidade viraram pó. Foi ali que comecei a entender o que significa ser "nada" para poder ser "tudo". Não era sobre anular a minha personalidade ou desistir dos sonhos que projetei como “pai de menino” (correr com meu filho, ver ele no campo jogando bola com os amigos, etc.). Era sobre reconhecer que a minha ideia de felicidade talvez fosse pequena demais. Que a minha definição de sucesso talvez fosse limitada demais. Que o meu conceito de força talvez fosse frágil e estereotipado demais.
Porque a verdade é que nunca fui tão presente quanto nas noites em que achei que não aguentaria. Nunca fui tão forte (de verdade) quanto nos dias em que me senti mais fraco. Nunca fui tão pai quanto nos momentos em que duvidei se estava fazendo tudo certo. É como se Deus pegasse os meus medos e os transformasse no material de construção da minha coragem. Até porque coragem, no fundo, é isso: seguir mesmo com medo. Como no dia em que vi o Tomás, depois da primeira cirurgia, todo “amarrado” na cama do hospital, olhando pra mim dizendo apenas “pai”, como quem diz: “me tira daqui”. E eu chorava, porque via meu filho naquele estado sem poder fazer nada, mas, ao mesmo tempo, sabendo que “aquilo” era o melhor pra ele. E, pra completar, parecia que ouvia a voz de Deus no meu coração, dizendo: “É assim que Eu me sinto, filho, quando te vejo sofrendo, sabendo que você precisa passar por isso porque, depois dessa dor, Eu tenho o melhor pra ti.” Essas experiências fortes foram me forjando, como que a ferro e fogo, pra eu entender que ser forte não é algo que sou, como que inato, mas algo que me torno, justamente quando reconheço que sozinho, eu não sou.
Hoje, quando acordo pouco antes das cinco da manhã para preparar as coisas em casa, quando levanto e carrego o Tomás uma infinidade de vezes, quando o acompanho na fisioterapia, quando explico para as meninas por que o irmãozinho é diferente e precisa de uma atenção a mais, quando me vejo sozinho em casa com três crianças por dez dias porque minha esposa está com a bebê num retiro de reciclagem, e ela, por sua vez, luta com uma força que nem sabia que tinha, entendo que estou vivendo uma versão da paternidade que nunca planejei. Mas talvez seja exatamente a que eu precisava viver.
Não, não é romantização do sofrimento. De jeito nenhum! Deus sabe que há dias difíceis, dias em que falta força, falta tudo, dias em que o coração pesa e a fé vacila. Mas é justamente nesses dias que descobrimos que existe algo maior que os nossos sentimentos, algo mais sólido que as nossas circunstâncias. Existe um sentido que não depende das coisas correrem como esperamos, mas de como escolhemos responder quando elas não correm.
Viktor Frankl dizia que a última das liberdades humanas é a capacidade de escolher nossa atitude diante de qualquer circunstância. Eu não posso escolher que o Tomás não tenha as limitações que tem. Não posso escolher que as noites sejam menos cansativas, ou que as finanças fiquem mais fáceis, e que eu não precise de campanha, de rifa, de me explicar para os outros que, mesmo trabalhando, ainda preciso de ajuda porque a conta não fecha. Mas posso escolher ver tudo isso não como castigo. Não como humilhação. Mas como convite. Convite pra descobrir reservas de amor que eu nem imaginava ter. E não tinha mesmo. Não sem Deus. Convite pra sair de mim e aprender a depender. Não de um jeito que me anula, mas de um jeito que me revela. Porque é nesse lugar da dependência Dele que, aos poucos, eu vou me tornando mais homem. Mais pai. Mais humano.
É curioso como funciona. Quando finalmente paramos de tentar ser tudo por conta própria, descobrimos que podemos ser muito mais do que imaginávamos, mas de um jeito completamente diferente. Não pelos nossos esforços, mas pela nossa disponibilidade. Não pela nossa capacidade, mas pela nossa confiança. Não apesar das nossas limitações, mas através delas.
Lembro de uma conversa que tive com um amigo há algumas semanas. Ele me disse: "Cara, eu não sei como você consegue. Se fosse comigo, acho que eu não aguentaria." Respondi que não aguento também, eu desmorono quase todo dia. A diferença é que aprendi que desmoronar não é o contrário de ser forte. Às vezes, desmoronar é o primeiro passo para ser reconstruído de um jeito melhor e se deixar ser refeito por Quem sabe o que fazer com a gente.
Porque existe uma ordem interior que não depende de tudo estar no lugar. Existe uma paz que não precisa da ausência de problemas. Existe uma alegria que não se alimenta só de coisas boas e existe um louvor que só se dá na Cruz. Essa ordem, essa paz, essa alegria e o louvor brotam quando paramos de tentar segurar o mundo nas mãos e começamos a deixar que o mundo nos segure.
Não estou falando de passividade espiritual ou de fatalismo travestido de fé. Estou falando de uma entrega ativa, de uma rendição inteligente. É continuar fazendo tudo o que está ao nosso alcance, mas sem a ansiedade de quem acha que o resultado final depende só de nós. É plantar com cuidado, regar com dedicação, mas entender que o crescimento é mistério, é graça, é algo que acontece para além dos nossos esforços.
Nos últimos meses, tenho sentido isso de um jeito muito concreto. Quando acordo de madrugada com o Tomás chorando e, em vez de me irritar com o sono perdido, consigo ver naquele momento uma oportunidade de estar presente. Quando vejo as meninas brincando de "fisioterapeuta" com as bonecas, ensinando elas a andar, e percebo que elas estão aprendendo sobre compaixão de um jeito que nenhum livro poderia ensinar. Quando minha esposa me olha, cansada mas sorrindo, e eu entendo que estamos construindo algo bonito mesmo no meio do caos.
Porque eu sempre cantei, mas agora estou descobrindo que, na vida, a harmonia não vem da ausência de dissonâncias, mas de aprender a tocar música mesmo quando algumas notas estão desafinadas. É encontrar a melodia que emerge quando paramos de lutar contra a partitura e começamos a tocá-la com o coração. É ser o que eu sou chamado a ser: Shalom! Essa palavra que tanto falamos na minha comunidade, que tem um significado muito além da tradução de paz.
Enfim, talvez seja isso que a música da Laura Salvador queria dizer desde o começo e era o que Deus, utilizando-se do “aleatório”, quis me dizer. Que ser "nada" não é se anular, mas esvaziar-se do ego que atrapalha. Que ser "tudo" não é ter controle sobre tudo, mas estar disponível para tudo. Que confiar cegamente não é ignorância, mas sabedoria de quem entendeu que existem coisas que só podem ser vistas com os olhos fechados.
E se você está lendo isso e se reconhecendo em alguma parte dessa história, saiba que não está sozinho. Todos nós, de alguma forma, estamos aprendendo a ser nada para ser tudo. Todos nós estamos descobrindo que a vida mais plena não é aquela que corre conforme planejamos, mas aquela que abraçamos conforme ela vem. Todos nós estamos entendendo que o sentido não está nas respostas que temos, mas na forma como lidamos com as perguntas que ficam.
No final das contas, talvez a vida seja exatamente isso: um grande exercício de confiança. E se é para confiar, que seja de olhos abertos para a realidade, mas com o coração rendido à esperança. Porque no fundo, no fundo, é só assim que faz sentido.
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